quinta-feira, 8 de março de 2012

Reflexões oportunas num dia oportuno (eu acho)


Sim, dia da mulher! Dia internacional. Ganhamos cumprimentos, aqueles sorrisos amigáveis, "ah o dia de vocês!", "ah o nosso dia!"... Mas uma coisa muito importante parece escapar...

As mulheres já conquistaram muitas coisas, e claro que há muito mais a conquistar. Uma delas é a empatia masculina, empatia pelos nossos direitos, pelas nossas vidas, pelas nossas vivências. Por exemplo, aconselhar as mulheres a aprenderem técnicas de defesa pessoal para se protegerem de agressores e abusos sexuais é jogar a responsabilidade pelo fim da violência contra a mulher nos ombros da própria mulher, enquanto os homens não são reeducados para não violentar, não abusar ou mesmo para denunciar, para tomar partido da mulher. Quando você fala isso a desculpa é "mas eu não faço/faria isso!". Mas a questão ainda assim é com você também. Quando suas amigas, companheira, mãe, filha, irmã etc. contarem para você algo ruim que aconteceu a elas pelo simples fato de serem mulheres, entenda o lado delas, compreenda o lado delas, e, acima de tudo, ACREDITE no lado delas. Para muitos homens, que acham que as mulheres são as verdadeiras privilegiadas do mundo de hoje, não há mais motivo para as lutas femininas e portanto o que todas fazemos é nos vitimizar. Amigos homens, não é assim. Ouça o nosso lado, se coloque no nosso lugar, reflita sobre os seus privilégios de ser homem.

Mas o meu texto também se dirige às mulheres, ou seja, nós. O que nós estamos fazendo para melhorar as nossas condições de igualdade? Somos educadas de modo competitivo, a mulher é inimiga, vai roubar o "nosso" homem, é inaceitavelmente mais bonita etc. Somos criadas para nos comparar umas com as outras ad eternum e isso é muito prejudicial para a nossa própria qualidade de vida - individual e coletiva. Depois de muito tempo e muito esforço, através de uma reeducação do olhar, eu consegui me libertar de vários julgamentos ruins sobre mulheres (afinal, não faz sentido: eu sou mulher!) e olhar para as outras com respeito e admiração. Isso não quer dizer que eu goste de todas as mulheres do mundo, obviamente! Mas o meu ponto é: por que olhar com inveja ou desprezo para uma mulher que eu acho bonita? Algo que me ajudou muito foi a dança do ventre, que trouxe inúmeros benefícios para a minha vida. Com a dança eu passei a observar melhor o meu corpo e o meu interior, reconhecer minhas qualidades e me admirar - e isso me fez olhar para as mulheres com mais doçura e também observar as coisas boas em cada uma. Sofrer porque fulana é mais bonita que eu é muito idiota: por que não focar no que eu tenho de bom e saber contemplar o que as outras têm de bom? Um olhar mais sereno e carinhoso com as mulheres gera empatia, a palavra-chave que eu citei no início. Precisamos reconhecer o nosso valor - individual e coletivo e unir forças para acabar com o machismo. Quando agimos de modo negativo para com outras mulheres fortalecemos comportamentos machistas. Quando chamamos uma de nós (essa é idéia que temos que ter em mente - uma de nós) de vaca, galinha, piranha, mocréia etc etc (o vocabulário pejorativo referente a mulher é extenso...) estamos ofendendo a todas, porque estamos dando razão ao machismo. Independente de você ser feminista ou não creio que seja do interesse geral feminino uma vida mais justa e mais agradável para a mulher. Ser respeitada independente da roupa, da linguagem, dos relacionamentos, das escolhas, dos comportamentos. Se você acha legal ou não minissaia e blusinha transparente é outra história - a questão não é essa! Eu não gosto das Panicats, por exemplo. Mas eu tenho consciência que elas são produto de uma cultura que tipifica e objetifica a mulher, elas sabendo ou não disso.
Reavaliar e reconfigurar o nosso olhar sobre nós mesmas é um passo para a descontrução dessa cultura que prejudica a todas nós, "santas ou putas".

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Deus e eu - um diálogo (ou monólogo?) franco


Como começar? Como conversar com alguém ou algo que eu não sei bem quem ou que é? Minha imaginação ainda é bem limitada e tenho dificuldades de falar assim, para o indefinido. Então vou fazer de conta que estou conversando com uma pessoa, ok? Aí já temos outro problema. A nossa cultura patriarcal nos ensinou Deus como um ser masculino. Por mais que eu tenha percebido que isso é ideológico, que faz parte de uma visão de mundo sexista, ensinada por homens, eu ainda não consigo imaginar Deus (mesmo achando que ele não é um ser, mas uma força, uma energia, seja lá o que for isso) sem pensar num velhinho de barba branca (quando eu era criança imaginava como o Merlin, mas isso passou). Isso é muito problemático para mim e só me mostra como os valores sociais e culturais se impregnam na nossa mente, no nosso imaginário... E tem outra coisa: por que eu escrevo o nome dele com letra maiúscula? Acho que isso não tá certo, mas vamos combinar que é um jeito de deixar claro que eu estou falando com um deus específico: o Deus que existe na minha cabeça.

Mas peraí: pra quem eu estou falando? Não era com Deus o bate-papo? Pois então, vamos começar de novo.

Oi, como vai? Aposto que essa é uma pergunta que nunca lhe fizeram, haha! Eu queria ter uma palavrinha com você. Você tá sabendo que há algum tempo eu estou confusa? Pois é, estou.
Eu fui ensinada a te ver como um pai. Por muito tempo funcionou muito bem. Mas leitura vai, leitura vem, muitas conversas por aí, com pessoas com visões de mundo diferentes e esse negócio de pai ficou meio estranho pra mim. Por que pai e não mãe? Sei lá, não parece muito justo, e você não é justiça, como me foi dito? Ah, me ajuda a te entender como algo justo, equilibrado, igualitário, vai! Vamos tentar?
Bem, esse é um só detalhe (importante, claro). Mas o meu problema é outro.
Minha criação f
oi espírita. Eu frequento o centro espírita toda semana, há muito tempo. Tem coisas bem legais, que me deixam alegre, como o serviço social. Acho fundamental, tenho o maior prazer de participar das atividades voluntárias, sei que isso ajudou a formar meu caráter. Mas ainda tem coisas que não são compatíveis comigo e eu tenho muitas dúvidas. Por muito tempo eu pensei que ter dúvidas era errado, era falta de confiança, de fé, sei lá o que. Pode até ser, mas eu as tenho e que posso fazer? Disseram que todo sofrimento tem causa, e muitas pessoas pedem, antes de nascer, para passar por essas ou aquelas situações difíceis, para aprender algo, para se redimir de erros de outras vidas. Isso colou perfeitamente pra mim por muitos anos. Mas poxa, a gente pode escolher muita coisa numa determinada circunstância e se arrepender, ver que aquilo não era bem o que a gente queria, que a gente não tem condições de passar por aquilo. E como fica? Quando eu penso nas pessoas que morrem de fome, de sede, de Aids em países africanos, como eu vou encontrar resposta pensando "ah, mas elas estão resgatando dívidas de outras vidas, elas escolheram esse sofrimento, para se purificar, para evoluir". Não sei, me sinto meio mostro pensando assim, por isso rejeitei essa explicação. Eu acho que existem sofrimentos que não se justificam por nada no mundo, estupros e fome, por exemplo. E outra coisa: e os animais? Como justificar o sofrimento dos animais? O que eles fizeram em vidas passadas? Eles são irracionais, logo não respondem por seus atos. Por que você permite que os humanos façam mal aos animais? Já aviso: esse negócio de livre-arbítrio não vai colar. Acho que simplesmente algumas coisas não deviam acontecer, e dizer que as pessoas são livres para escolherem o bem e o mal me parece muito lavar as próprias mãos, tipo "não posso fazer nada". Poxa, eu sei que você pode. Pare com tanto sofrimento. Se as pessoas tem erros passados para corrigir, invente outro jeito para isso, não tá certo. E eu nem sou tão boa assim para perceber isso, como você não percebe? Você é boa gente, não é?
Esses dias eu percebi uma coisa importante. A minha fé, minha crença me bastam para lidar com a minha pr
ópria vida. Nas minhas orações consigo encontrar consolo e respostas para meus problemas, e consigo ter gratidão pelas coisas boas na minha vida. Mas minha fé e minha crença não me são suficientes para entender os problemas do mundo. Não me são suficientes para entender e aceitar que uma menina de 12 anos seja estuprada, que crianças sejam queimadas vivas na Palestina, que pessoas vivam com menos de 1 dólar por dia. Não tô dizendo que quero encontrar na fé um conforto para isso. Não há consolo possível, não sou egoísta para querer que você me dê uma explicação plausível para essas coisas e assim eu posso dormir em paz. Só quero que você faça alguma coisa. Ou me mostre um jeito de fazer também. Você tem um lado doce para mim, que me deixa muito alegre muitas vezes. Mas eu quero ver essa doçura para todos. Qualquer pessoa deveria poder ser minimamente feliz, com você ou sem você. Eu acho que você existe sim, mas eu não te entendo muito bem. Eu gosto de você, mas você não acha que as coisas poderiam ser diferentes? Por que você é tão quieto?

terça-feira, 19 de julho de 2011

Mosca na sopa




É preciso admitir que não sabe para poder aprender.
Ouvi isso há alguns meses de uma professora muito especial. Parece tão óbvio, tão clichê, mas me atingiu como um raio. Parei para pensar mesmo. A gente fala muita coisa, todos os dias,
como se soubesse o que está falando. E pensar, então, mais ainda. Ouvir aquilo, ainda mais vindo de uma pessoa que eu admiro tanto, mexeu comigo e me fez perceber uma porção de coisas que eu dizia, assim, da boca pra fora, sem raciocinar. E isso é realmente patético, quando você cansa de ouvir que o ser humano é o único animal racional. A faculdade tem me ajudado muito a reavaliar meus preconceitos. Sim, os tão falados preconceitos, que quase ninguém admite que tem, e quando admite sempre dá uma justificativa estúpida. Puxa, agora eu entrei num assunto gigantesco, de proporções assustadoras, do qual vejo a sombra enorme me intimidando. Não sei se eu vou conseguir chegar onde quero, mas não custa tentar. Eu sempre tenho a sensação que começo meus textos com uma ótima idéia e me perco no meio do caminho. Acho que vou fazer isso de novo, mas tudo bem, esses desvios de caminho não podem ser tão ruins assim...
Tenho lido muita coisa que parece se encaixar tão perfeitamente com o que tenho pensado e procurado, e é tanta coisa diferente entre si mas que combina tanto que parece que esses textos dão uma piscadinha de olho entre eles, como quem dissesse: Ha, olha só, ela vai se surpreender com isso! Pois é, muito obrigada, textos amigos, por tudo que tê
m feito por mim (juro que dou os créditos a vocês no final). Caramba, mas não sei ainda por começar e parece que eu já escrevi um bocado.
Bem, vamos lá, Nara, comece de qualquer jeito! O tempo está passando e... isso não faz a menor diferença, porque este é o seu blog e você não tem que justificar nada para ninguém! Ha ha!
Ok, confesso, estou ganhando tempo para mim mesma, enquanto as idéias vão se enfileirando, bonitinhas mas atrapalhadas, na minha cabeça. Vou sortear uma agora:
Tenho estudado algo sobre minorias. Faço e não faço parte delas. Faço parte porqu
e sou mulher (e embora haja mais mulheres do que homens, somos tratadas como minoria), sou espírita (mas isso não causa muito problema, não, já causou, mas está tudo bem, até porque seria bem mais grave se eu fosse atéia, por exemplo, aí sim, uma minoria bastante discriminada) e... faço Letras (não sei dizer quantas pessoas fazem Letras, sei que na USP são bastante - 900 alunos novos por ano! - mas também somos tratados como minoria - "ah, coitados, vão passar fome!" etc etc). Mas olha só: eu sou branca e heterossexual, e isso me concede privilégios que infelizmente quem não é muitas vezes não tem. E isso é grave. Por isso que é absurdo falar "porra, mas hoje em dia não pode mais fazer piada de negro, de viado!", porque, como a Lola Aronovich me mostrou: quantas piadas sobre brancos heterossexuais classe média você conhece? Pois é, essa conta tá meio desproporcional... "Ah, mas o Chris Rock faz piada de negro!" Opa, acho que tem uma pequena diferença: ele é negro. Não sei se é certo ou errado, mas é muito distante do impacto e do significado das mesmas piadas na boca de um branco.
Muito bem, mesmo assim, eu, do alto do meu castelo de privilégio, nunca havia parado para pensar numa porção de coisas que dizem respeito às minoria
s e como, por alguns comentários despretensiosos aqui e ali, que eu nem parava para pensar, percebi que endossava essa cultura de exclusão e dedo apontado na cara do diferente. Cada coisa que eu pensava, com que concordava (sem nem saber do que tava falando!) que dá vergonha, mesmo. E foi preciso que eu admitisse que eu não sabia para abrir minha cabeça para o entendimento. Não posso dizer que entendo, mas estou me esforçando e se possível jogando sementinhas de compreensão, assim, pro alto, como quem não quer nada. Vai que dá em alguma coisa... Tive uma matéria este semestre que me ajudou muito neste processo: Introdução aos Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa. E estudar, ainda que de modo bem introdutório, as causas da exclusão do prestígio literário de tantos autores, muitos, mas muitos deles, negros, de países "periféricos" (sim, porque para o Ocidente o que não é Europa e EUA é periferia, ou seja: NADA). E isso indigna, sabe? E dá um sentimento de culpa coletivo, nós, descendentes de colonizadores, que trazemos essa herança de discriminação estúpida. Passar por essa experiência, de entrar em contato com o marginalizado (ainda que do conforto - tá, não tanto conforto assim - da cadeira da sala de aula), me fez lembrar de como eu era quando criança e que tentei apagar de mim, porque afinal "o mundo real não é assim, você é muito ingênua e não vai mudar o mundo!". Certo, eu não vou mudar o mundo (embora eu tenha uma grande tentação em dizer que vou, rs), mas também cruzar os braços, comprar meu carro e ler a Veja não parece uma boa solução para esse impasse. Humm, estou me desvirtuando da conversa, ia dizer como eu era quando criança.
Apesar de mei
o boba, eu tinha alguns sentimentos bons, de solidaridedade, fazia campanha para arrecadar alimentos para o Sertão Nordestino, tive ímpetos revolucionários quando li "50 maneiras de mudar o mundo" (não lembro de quem é esse livro) e me vi tomada por um grande amor pelo planeta, inclusive (por que não?) pelas formigas. Quando um coleguinha matou uma formiga - não, eu não fiz o escândalo daquele menininho do vídeo (que eu adorei) - mas eu chorei, sim, briguei com o coleguinha e pedi licença para a professora para eu sair da sala: levei a formiguinha na mão, fui até o jardim da escola, enterrei a pobrezinha, arrumei dois gravetinhos e fiz uma cruz para ela e rezei o Pai-Nosso (porque, na minha cabecinha de criança, TODO o mundo era cristão, rs. Coitada da formiga, e se fosse judia?!). Você (se houver um você me lendo) deve estar pensando: nossa, que menina boazinha/dramática/bobinha, etc. Mas vá lá (esse "vá lá" aprendi com o Machado de Assis, acho o máximo), a formiga ainda é justificável: é um bichinho, um ser vivo... Eu ia além. Lembro de um dia que minha mãe estava terminando de preparar o jantar e me pediu para enxugar os pratos para colocar na mesa. Eu peguei o pano, comecei a enxugar, coloquei o primeiro prato na mesa. Aí vi que tinha umas gotinhas de água ainda. Aquilo me horrorizou: é preciso que o pano salve as gotinhas, imagine se a sopa quente cai em cima delas, e mata todas, queimadas?!! Tudo bem, pode rir, mas eu pensava mesmo essas coisas, imaginava que podiam ser famílias desabrigadas, que foram parar, coitadas, naquele prato, e esperavam o pano salvador, e de repente podia estar tudo acabado pelo caldo fervente. Viu só como é trágico, aposto que você já está chorando agora.
Sim, eu pensava em coisas assim. Tinha também o problema com as mãos. Veja só, eu sou destra: morria de pena da minha mão esquerda, tadinha, que não tinha grandes oportunidades. Então às vezes eu deixava ela fa
zer o que era o serviço da direita, pra se sentir melhor. Ah, tá, você diz agora, tá explicado porque ela foi parar na Letras, além de sentimental é comunista.
Pois é, eu tenho um monte dessas histórias piedosas - um dia eu conto mais - e me pego pensando agora: se eu tinha, tão pequena, essa capacidade de me colocar no lugar do outro, de ir além, de enten
der, de sofrer junto - por elementos inanimados! - por que eu não me envolveria com os sofrimentos das pessoas reais, dos seres concretos? Por que eu deveria achar que o problema do negro, do homossexual, do pobre, da mulher, de qualquer discriminado, não é o meu também? Sei que eu não posso ser porta-voz de ninguém, só de mim mesma, e na verdade o que eu quero é que estes alguéns possam ter a sua própria voz, expressem o que quiserem no seu tom, dentro de seu ritmo e melodia. Mas outra coisa eu também quero: fazer parte desse coro, ainda que eu seja só um zumbido. Isso mesmo, eu quero ser o zumbido, aquele sonzinho que incomoda...




Referências não explícitas (talvez nem implícitas):

Dialética da colonização - BOSI, Alfredo, 1992 (http://www.4shared.com/document/K823tCA_/Bosi_Alfredo_Dialetica_Da_Colo.html)

"Transculturação e transculturação narrativa". In: FIGUEIREDO, Eurídice (Org.). Conceitos de literatura e cultura. Juiz de Fora: Editora da UFJF

Procurem textos sobre cânone, literatura marginalizada, exclusão (por exemplo) no site da Abralic (Associação Brasileira de Literatura Comparada):
www.abralic.org.br

www.escrevalolaescreva.blogspot.com

Depois eu separo mais textos. Mas aí já tem coisa pra caramba!




terça-feira, 17 de maio de 2011

As mil e uma coisas

Eu trabalho (estagio) numa biblioteca. Por uma indicação de uma amiga da minha irmã, vim parar nesse lugar estranho e romântico que fazia a alegria da minha fantasia de criança. Criança: vamos começar por aí, minha infância.
Aprendi a ler com quase seis anos. Fiquei um ano sem ir para a escolinha porque minha mãe não tinha conseguido manter a bolsa na escola em que eu estudava e, não me lembro porquê, não me colocou numa creche, qualquer coisa do tipo. Foi um ano angustiante - naquilo que pode ser angústia para uma criança - em que eu, ainda não alfabetizada, ficava desesperadamente tentando inventar significados para o que eu "lia" nos gibis, por exemplo. Até que um dia, meu irmão - dois anos mais velho - resolveu me ensinar a ler. Lembro perfeitamente do livro: As pirâmides, umlivrinho pequeno, provavelmente de alguma coleção de jornal ou revista, sei lá. Era lindo, tinha umas ilustrações maravilhosas, com umas entradas secretas dentro daqueles monumentos fascinantes. Curioso que meu irmão - que me dera a chave para um mundo sem mais solidão - nunca gostou de ler, até hoje é um sacrifício fazê-lo se interessar por um conto de uma página do Kafka. Mas minha gratidão a ele vai perdoar esse desânimo.
Aprendi e aprendi rápido, pois descobri um lugar estranho e romântico (tão perto da minha casa!), onde passei muitas manhãs e tardes. A biblioteca. A biblioteca Castro Alves (lembro de como queria saber quem era esse rapaz, de nome tão estranho - "Castro? Nunca vi esse nome!"). Lembro também de um dia falar para a bibliotecária, que estava sempre de mau humor (como isso era possível num lugar daquele?!) que ela tinha o melhor emprego do mundo. Hoje sei que um bibliotecário não fica simplesmente rodeado de livros - porque para mim era isso: ficar num lugar cheio de livros, e saber onde fica cada um deles! - há sempre os "ossos do ofício". Mas o fascínio não acabou, e foi despertado alguns dias atrás...

Eu estava na aula de Estudos da Educação, no curso de Licenciatura. A professora, como sempre, passou um texto para lermos para a próxima aula e trazermos uma reflexão a respeito. Anotei o nome do texto, do livro em que se encontrava, e da autora. Mais tarde, entrei no sistema de busca das bibliotecas da USP para saber se tinham esse livro, porque eu não queria gastar com xerox. Descobri que havia, justamente na biblioteca em que eu trabalho. Peguei o código da localização na estante e aluguei.

Parei para pensar que loucura que é isso. Uma obra, que até algumas horas antes, não significava nada para mim, de repente era algo que fazia sentido, que eu precisava conhecer para aprender uma determinada coisa, para pensar num determinado problema, e que, em meio a tantas outras, estava lá, num lugar específico, num prédio pertinho de mim. Lembrei das metáforas do Borges sobre as bibliotecas, como uma imagem de nossa memória, de nossa vida: "uma biblioteca interminável". Pensei em quantas coisas existiam no mundo, guardadinhas num lugar específico, num prédio, concreto ou não, pertinho ou não, e quais delas iriam entrar ou passar na minha vida. Pensei na multiplicidade que é esse mundo em que a gente vive, e que, infelizmente, às vezes vive como se fosse uma coisa só, uma monocórdia, um único tom. Pensei nas mil e uma noites, do consolo de sempre haver uma noite a mais. Que eu sempre preferi as reticências ao ponto final...

terça-feira, 1 de março de 2011

Prosa...

Acho que eu peguei pesado ontem, rs. Deixei um amigo triste, o namorado me achou dramática, eu me senti boba. Não devia ter voltado ainda a escrever, rs. Porém, para não abandonar este blog novamente, vou continuar por aqui, me expressando de outra forma: com as palavras dos outros.
Tenho lido bastante coisa interessante, visto filmes ótimos, ouvindo boa música (pois é, eu estava errada: felicidade não é necessariamente solidão, é todas essas coisas boas). E vou compartilhar isso com meus leitores imaginários, rs.

Vamos começar com as leituras, certo?
Ganhei um livro excelente de Amigo Secreto, um romance da década de 30 mais ou menos, do gaúcho Dyonélio Machado: Os ratos. Fala, basicamente, de um homem que tem uma dívida de 53 mil réis com o leiteiro, o que é uma quantia ínfima. O romance se desenvolve em apenas um dia, acompanhando o herói Naziazeno em sua dificuldade enorme para conseguir o dinheiro, usando técnicas narrativas que me surpreenderam pelo efeito muito real de você se sentir na pele do protagonista mesmo sendo narrado em terceira pessoa!

Li uma peça que superou muito minhas expectativas: Gota d'água, do Chico Buarque e Paulo Pontes. Eu sempre gostei muito da música que tem o mesmo nome, e fiquei sabendo que era também uma peça do Chico. Embora eu considere o Chico um compositor expecional, não conhecia sua obra literária, então não esperava o prazer que tenho com suas músicas. Mas foi o mesmo. A peça é incrível, uma adaptação de Medéia, do teatro grego, para um cortiço carioca.


Depois eu continuo com a literatura, vamos para o cinema!

Assisti uma mostra de cinema na USP muito boa: Famílias Excêntricas.
Não consegui assistir todos, mas os que eu vi achei muito bons:
Lavoura Arcaica - sempre quis ver, muito melhor do que eu imaginava. Trilha sonora maravilhosa, sem falar nas atuações.
A casa de Alice - outro nacional, muito bom, simples e bem feito, infelizmente pouco divulgado, com atores desconhecidos e muito talentosos. Lembra, de certa forma, um conto do Tchekhov, daqueles que se destacam por conseguir retratar as mínimas partes das misérias humanas de forma singela porém profunda.
Ninguém pode saber - Um filme japonês muito bonito, embora eu seja suspeita para falar porque adoro filmes com crianças (filmes bem feitos com crianças). Além de muitos pontos positivos, um dos melhores títulos (não sei se em japonês é igual) que eu já vi, pela relação perfeita entre forma e conteúdo.
Uma mulher sob influência - De um diretor que quero muito conhecer bem: John Cassavetes. O filme é com a esposa dele, Gena Rowlands (que protagoniza meu filme preferido do Woody Allen, A outra). Não consigo nem falar nada sobre esse filme, só vendo mesmo.


Música! Tenho escutado muito Chico Buarque, especialmente:
O que será (a flor da terra);
Valsinha;
Geni e o zepelim;
Gota d'água;
Olhos nos olhos;
Cálice;
Noite dos mascarados;
Construção;
Mulheres de Atenas (uma das músicas mais bonitas que eu já ouvi);
Chico é Chico, o que você ouvir dele vai ser muito melhor que a média.


Também estou ouvindo Geraldo Azevedo, Sam Cooke, The Baseballs (uma banda alemã que faz versões em rockabily de muita música que eu não gosto, por exemplo, Umbrella, da Rihanna), Dire Straits (nunca enjôo), e muita música árabe! (sim, tenho gostos um pouco variados, rs).
Vou deixar alguns links legais aqui no final, porque ser feliz não é tão esquisito assim...


http://www.tvcultura.com.br/aloescola/literatura/guimaraesrosa/index.htm

http://cesargiusti.bluehosting.com.br/Contos/textos/desenredo.htm

http://cesargiusti.bluehosting.com.br/Contos/textos/medalhao.htm

http://www.releituras.com/jlborges_elogio.asp

http://www.releituras.com/marioandrade_natal.asp

http://ebooksgratis.com.br/quadrinhos/quadrinhos-no-coracao-da-tempestade-will-eisner/

http://www.quino.com.ar/portugues/trabajos_auto.htm

http://www.thebaseballs.com/

http://www.bellydancesuperstars.com/radio/popup.html

http://www.chicobuarque.com.br/

http://www.banksy.co.uk/

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

"Gostar de estar vivo dói"




Minha ausência não é injustificada. Além do acúmulo de coisas a fazer no final do ano, não consegui organizar as idéias que passaram a povoar minha cabeça. Parte dessas idéias foi alimentada em mim pela leitura de A paixão segundo G.H., romance de Clarice Lispector. Não cabe à minha ignorância tentar explicar ou dar uma idéia que seja do que é o livro, mas, em termos bem genéricos (põe genérico nisso), fala do humano. O romance tem inúmeras coisas que dão o que pensar, propõe questões complexas (a própria autora adverte o leitor, logo no início, para que não leia com a alma despreparada - como se houvesse preparo possível para a experiência que o livro nos leva!), mas, enfim, o que mais me chamou a atenção e mexeu comigo de maneira muito profunda é o problema da necessidade do sofrimento humano. Deus do céu, é muita coisa logo de cara, depois de meses longe!, vamos para outro parágrafo.
A questão é, pelo menos a princípio, a seguinte: num mundo em que somos condicionados desde que nascemos a procurar o prazer, a felicidade (e a nossa luta por todos os séculos tem sido essa, mesmo em tempos remotos em que outras coisas como "onde vou encontrar comida" ocupavam
muito nossas preocupações), somos conduzidos e conduzimos nossas vidas e as alheias pelo sofrimento. Sim, exatamente aquilo de que fugimos (ou acreditamos que fugimos) é o que move a nossa vida e a sociedade desde sempre. O que a Clarice fala em seu romance é que traz a grande surpresa (ou não, se você já percebeu isso antes): a felicidade é solidão. Quando sofremos contamos para alguém e esse alguém, de alguma forma, se identifica conosco: o sofrimento cria conexões entre as pessoas. Quando estamos felizes o sentimento é tão particular, esquisito e indescritível que não conseguimos nos conectar com as pessoas, porque a maioria delas não está sentindo aquilo. Mas sofrimento todos temos, em algum nível. E isso é um consolo, pensando de uma maneira diferente, porque isso faz com que não nos sintamos sozinhos no mundo. Esse sentimento é, talvez, o maior motivo de crise do homem, o que faz, quem sabe, com que a luta pela felicidade seja, na verdade, um objetivo secundário: o que o homem mais quer é não estar sozinho. Mesmo as pessoas que dizem apreciar a solidão talvez sintam isso porque elas sabem que não são as únicas, e esse sentimento compartilhado, mesmo inconscientemente, traz conforto e uma espécie de "companhia".
Estou me afundando num texto obscuro e complicado, mesmo eu levando meses para conseguir escrever isso vejo que ainda é um pensamento muito frágil e sem contorno. Mas garanto que não é algo sem fundamento; estudiosos já disseram, muito melhor do que eu, de que como o sofrimento é necess
ário para o desenvolvimento humano: que lindas obras de arte não teríamos se não fosse pelo sofrimento? A dor nos leva a querer exprimi-la de alguma forma, até mesmo com a própria dor. A dor me leva a escrever todas essas coisas, mesmo que eu não saiba exatamente o que me dói - e o sentimento de não saber machuca, confunde, desespera: é como ter sede e não saber onde está a água, ou qual é a água que precisamos.

Não aguento mais escrever agora. "Não, cansaço não é... É eu estar existindo E também o mundo, Com tudo aquilo que contém, Como tudo aquilo que nele se desdobra" (Álvaro de Campos).

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Cultivo de insignificâncias


A arte parece ser inerente ao ser humano. Entretanto, nos perguntamos muitas vezes se é necessária, se é útil, para que serve (a velha procura por praticidade), se viveríamos sem, por que gostamos, por que consideramos determinada coisa uma obra de arte.
Bem, são muitas perguntas e fico feliz por não ter as respostas. Ontem li algo, meio "
por cima", de que, segundo Nietzsche, não é a dúvida, mas, sim, a certeza que nos enlouquece. Enquanto pretender permanecer lúcida, vou me contentando com meus modestos palpites...
Sobre a questão de "viv
er sem", me lembro de uma entrevista que assisti com o ator Anthony Hopkins que, dirigindo-se à uma platéia de estudantes de dramaturgia, disse: "Se amanhã ninguém mais atuar, fazer filmes e peças, o mundo não vai parar. Nós carecemos totalmente de poder. Isso é um grande alívio". Creio que só uma pessoa com alguma sabedoria seria capaz de tal pensamento. A recompensa da arte é estar justamente à margem, portanto incapaz de parar o mundo. Sei que muitas manifestações artísticas, de vários gêneros e categorias, ajudaram a transformar o mundo e tiveram uma participação contundente em nossa sociedade, não estou negando isso. O que quero dizer - e talvez não direi - é que a Arte tem um alcance muito mais subjetivo, portanto mais pessoal, e é disso que eu gosto; tenho necessidade de me sentir intimamente conectada com algo.
Está bem, isso aqui está muito abstrato. Para quem gosta de exemplos, comentarei dois que passaram pela minha vida recentemente e têm provocado em mim algumas reflexões e uma comoção que ainda não foi d
igerida.
Falarei de ambos ao mesmo tempo, pela semelhança da reação que me causaram: são os contos Os astrônomos, do Graciliano e Felicidade clandestina, da Clarice (é, eu falo de arte co
mo um todo mas não consigo fugir das letras). Os textos tratam, de maneiras distintas, da experiência da leitura, do contato com a literatura. Não vou estragá-los com comentários pobres (deixarei os links ao término da postagem), mas penso que me dão alguma pista sobre as perguntas do início deste texto: o encontro com a Arte que se apresenta como uma porta para a fantasia, além do mundo cotidiano, ordinário; uma fuga daquilo que torna esse cotidiano irremediável, a descoberta de uma nova possibilidade.
Graciliano considerava a literatura como algo parecido com um "cultivo de insignificâncias", mas insignificâncias capazes de dar sentido ao mundo, mesmo que seja um mundo degradado, onde palavras de salvação não tenham mais razão (será?). Não é isso que tentamos fazer diariamente? Buscar algo além de um "simples pãozinho com manteiga", como diria Alfred Döblin? E se não for capaz de nos apontar uma re
sposta, como pede Ferreira Gular, que ao menos nos retire, por alguns momentos, de um mundo sem respostas. Parece que a relação entre a Arte e a Vida é mais estreita do que supúnhamos. Enquanto penso melhor nisso - e esse "enquanto" pode ser infinito - sugiro esse duplo encontro: com o universo dos contos e com o universo que a Arte pode nos oferecer.

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http://impressoesdeleitura.blogspot.com/2010/04/os-astronomos-aos-nove-anos-eu-era.html
Na verdade, não é um conto - é um capítulo de um romance - mas pode ser lido como tal, pois apresenta uma unidade e uma força autônoma. O texto se encontra no livro "Infância", de 1945 e é uma reflexão do Graciliano adulto acerca do Graciliano menino, e o que o levou a ser o escritor que foi;
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http://intervox.nce.ufrj.br/~valdenit/felicida.htm
Faz parte do livro de mesmo nome do conto, de 1971, e reúne outros contos da autora (também tem traços auto-biográficos)