terça-feira, 19 de julho de 2011

Mosca na sopa




É preciso admitir que não sabe para poder aprender.
Ouvi isso há alguns meses de uma professora muito especial. Parece tão óbvio, tão clichê, mas me atingiu como um raio. Parei para pensar mesmo. A gente fala muita coisa, todos os dias,
como se soubesse o que está falando. E pensar, então, mais ainda. Ouvir aquilo, ainda mais vindo de uma pessoa que eu admiro tanto, mexeu comigo e me fez perceber uma porção de coisas que eu dizia, assim, da boca pra fora, sem raciocinar. E isso é realmente patético, quando você cansa de ouvir que o ser humano é o único animal racional. A faculdade tem me ajudado muito a reavaliar meus preconceitos. Sim, os tão falados preconceitos, que quase ninguém admite que tem, e quando admite sempre dá uma justificativa estúpida. Puxa, agora eu entrei num assunto gigantesco, de proporções assustadoras, do qual vejo a sombra enorme me intimidando. Não sei se eu vou conseguir chegar onde quero, mas não custa tentar. Eu sempre tenho a sensação que começo meus textos com uma ótima idéia e me perco no meio do caminho. Acho que vou fazer isso de novo, mas tudo bem, esses desvios de caminho não podem ser tão ruins assim...
Tenho lido muita coisa que parece se encaixar tão perfeitamente com o que tenho pensado e procurado, e é tanta coisa diferente entre si mas que combina tanto que parece que esses textos dão uma piscadinha de olho entre eles, como quem dissesse: Ha, olha só, ela vai se surpreender com isso! Pois é, muito obrigada, textos amigos, por tudo que tê
m feito por mim (juro que dou os créditos a vocês no final). Caramba, mas não sei ainda por começar e parece que eu já escrevi um bocado.
Bem, vamos lá, Nara, comece de qualquer jeito! O tempo está passando e... isso não faz a menor diferença, porque este é o seu blog e você não tem que justificar nada para ninguém! Ha ha!
Ok, confesso, estou ganhando tempo para mim mesma, enquanto as idéias vão se enfileirando, bonitinhas mas atrapalhadas, na minha cabeça. Vou sortear uma agora:
Tenho estudado algo sobre minorias. Faço e não faço parte delas. Faço parte porqu
e sou mulher (e embora haja mais mulheres do que homens, somos tratadas como minoria), sou espírita (mas isso não causa muito problema, não, já causou, mas está tudo bem, até porque seria bem mais grave se eu fosse atéia, por exemplo, aí sim, uma minoria bastante discriminada) e... faço Letras (não sei dizer quantas pessoas fazem Letras, sei que na USP são bastante - 900 alunos novos por ano! - mas também somos tratados como minoria - "ah, coitados, vão passar fome!" etc etc). Mas olha só: eu sou branca e heterossexual, e isso me concede privilégios que infelizmente quem não é muitas vezes não tem. E isso é grave. Por isso que é absurdo falar "porra, mas hoje em dia não pode mais fazer piada de negro, de viado!", porque, como a Lola Aronovich me mostrou: quantas piadas sobre brancos heterossexuais classe média você conhece? Pois é, essa conta tá meio desproporcional... "Ah, mas o Chris Rock faz piada de negro!" Opa, acho que tem uma pequena diferença: ele é negro. Não sei se é certo ou errado, mas é muito distante do impacto e do significado das mesmas piadas na boca de um branco.
Muito bem, mesmo assim, eu, do alto do meu castelo de privilégio, nunca havia parado para pensar numa porção de coisas que dizem respeito às minoria
s e como, por alguns comentários despretensiosos aqui e ali, que eu nem parava para pensar, percebi que endossava essa cultura de exclusão e dedo apontado na cara do diferente. Cada coisa que eu pensava, com que concordava (sem nem saber do que tava falando!) que dá vergonha, mesmo. E foi preciso que eu admitisse que eu não sabia para abrir minha cabeça para o entendimento. Não posso dizer que entendo, mas estou me esforçando e se possível jogando sementinhas de compreensão, assim, pro alto, como quem não quer nada. Vai que dá em alguma coisa... Tive uma matéria este semestre que me ajudou muito neste processo: Introdução aos Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa. E estudar, ainda que de modo bem introdutório, as causas da exclusão do prestígio literário de tantos autores, muitos, mas muitos deles, negros, de países "periféricos" (sim, porque para o Ocidente o que não é Europa e EUA é periferia, ou seja: NADA). E isso indigna, sabe? E dá um sentimento de culpa coletivo, nós, descendentes de colonizadores, que trazemos essa herança de discriminação estúpida. Passar por essa experiência, de entrar em contato com o marginalizado (ainda que do conforto - tá, não tanto conforto assim - da cadeira da sala de aula), me fez lembrar de como eu era quando criança e que tentei apagar de mim, porque afinal "o mundo real não é assim, você é muito ingênua e não vai mudar o mundo!". Certo, eu não vou mudar o mundo (embora eu tenha uma grande tentação em dizer que vou, rs), mas também cruzar os braços, comprar meu carro e ler a Veja não parece uma boa solução para esse impasse. Humm, estou me desvirtuando da conversa, ia dizer como eu era quando criança.
Apesar de mei
o boba, eu tinha alguns sentimentos bons, de solidaridedade, fazia campanha para arrecadar alimentos para o Sertão Nordestino, tive ímpetos revolucionários quando li "50 maneiras de mudar o mundo" (não lembro de quem é esse livro) e me vi tomada por um grande amor pelo planeta, inclusive (por que não?) pelas formigas. Quando um coleguinha matou uma formiga - não, eu não fiz o escândalo daquele menininho do vídeo (que eu adorei) - mas eu chorei, sim, briguei com o coleguinha e pedi licença para a professora para eu sair da sala: levei a formiguinha na mão, fui até o jardim da escola, enterrei a pobrezinha, arrumei dois gravetinhos e fiz uma cruz para ela e rezei o Pai-Nosso (porque, na minha cabecinha de criança, TODO o mundo era cristão, rs. Coitada da formiga, e se fosse judia?!). Você (se houver um você me lendo) deve estar pensando: nossa, que menina boazinha/dramática/bobinha, etc. Mas vá lá (esse "vá lá" aprendi com o Machado de Assis, acho o máximo), a formiga ainda é justificável: é um bichinho, um ser vivo... Eu ia além. Lembro de um dia que minha mãe estava terminando de preparar o jantar e me pediu para enxugar os pratos para colocar na mesa. Eu peguei o pano, comecei a enxugar, coloquei o primeiro prato na mesa. Aí vi que tinha umas gotinhas de água ainda. Aquilo me horrorizou: é preciso que o pano salve as gotinhas, imagine se a sopa quente cai em cima delas, e mata todas, queimadas?!! Tudo bem, pode rir, mas eu pensava mesmo essas coisas, imaginava que podiam ser famílias desabrigadas, que foram parar, coitadas, naquele prato, e esperavam o pano salvador, e de repente podia estar tudo acabado pelo caldo fervente. Viu só como é trágico, aposto que você já está chorando agora.
Sim, eu pensava em coisas assim. Tinha também o problema com as mãos. Veja só, eu sou destra: morria de pena da minha mão esquerda, tadinha, que não tinha grandes oportunidades. Então às vezes eu deixava ela fa
zer o que era o serviço da direita, pra se sentir melhor. Ah, tá, você diz agora, tá explicado porque ela foi parar na Letras, além de sentimental é comunista.
Pois é, eu tenho um monte dessas histórias piedosas - um dia eu conto mais - e me pego pensando agora: se eu tinha, tão pequena, essa capacidade de me colocar no lugar do outro, de ir além, de enten
der, de sofrer junto - por elementos inanimados! - por que eu não me envolveria com os sofrimentos das pessoas reais, dos seres concretos? Por que eu deveria achar que o problema do negro, do homossexual, do pobre, da mulher, de qualquer discriminado, não é o meu também? Sei que eu não posso ser porta-voz de ninguém, só de mim mesma, e na verdade o que eu quero é que estes alguéns possam ter a sua própria voz, expressem o que quiserem no seu tom, dentro de seu ritmo e melodia. Mas outra coisa eu também quero: fazer parte desse coro, ainda que eu seja só um zumbido. Isso mesmo, eu quero ser o zumbido, aquele sonzinho que incomoda...




Referências não explícitas (talvez nem implícitas):

Dialética da colonização - BOSI, Alfredo, 1992 (http://www.4shared.com/document/K823tCA_/Bosi_Alfredo_Dialetica_Da_Colo.html)

"Transculturação e transculturação narrativa". In: FIGUEIREDO, Eurídice (Org.). Conceitos de literatura e cultura. Juiz de Fora: Editora da UFJF

Procurem textos sobre cânone, literatura marginalizada, exclusão (por exemplo) no site da Abralic (Associação Brasileira de Literatura Comparada):
www.abralic.org.br

www.escrevalolaescreva.blogspot.com

Depois eu separo mais textos. Mas aí já tem coisa pra caramba!