terça-feira, 19 de outubro de 2010

Cultivo de insignificâncias


A arte parece ser inerente ao ser humano. Entretanto, nos perguntamos muitas vezes se é necessária, se é útil, para que serve (a velha procura por praticidade), se viveríamos sem, por que gostamos, por que consideramos determinada coisa uma obra de arte.
Bem, são muitas perguntas e fico feliz por não ter as respostas. Ontem li algo, meio "
por cima", de que, segundo Nietzsche, não é a dúvida, mas, sim, a certeza que nos enlouquece. Enquanto pretender permanecer lúcida, vou me contentando com meus modestos palpites...
Sobre a questão de "viv
er sem", me lembro de uma entrevista que assisti com o ator Anthony Hopkins que, dirigindo-se à uma platéia de estudantes de dramaturgia, disse: "Se amanhã ninguém mais atuar, fazer filmes e peças, o mundo não vai parar. Nós carecemos totalmente de poder. Isso é um grande alívio". Creio que só uma pessoa com alguma sabedoria seria capaz de tal pensamento. A recompensa da arte é estar justamente à margem, portanto incapaz de parar o mundo. Sei que muitas manifestações artísticas, de vários gêneros e categorias, ajudaram a transformar o mundo e tiveram uma participação contundente em nossa sociedade, não estou negando isso. O que quero dizer - e talvez não direi - é que a Arte tem um alcance muito mais subjetivo, portanto mais pessoal, e é disso que eu gosto; tenho necessidade de me sentir intimamente conectada com algo.
Está bem, isso aqui está muito abstrato. Para quem gosta de exemplos, comentarei dois que passaram pela minha vida recentemente e têm provocado em mim algumas reflexões e uma comoção que ainda não foi d
igerida.
Falarei de ambos ao mesmo tempo, pela semelhança da reação que me causaram: são os contos Os astrônomos, do Graciliano e Felicidade clandestina, da Clarice (é, eu falo de arte co
mo um todo mas não consigo fugir das letras). Os textos tratam, de maneiras distintas, da experiência da leitura, do contato com a literatura. Não vou estragá-los com comentários pobres (deixarei os links ao término da postagem), mas penso que me dão alguma pista sobre as perguntas do início deste texto: o encontro com a Arte que se apresenta como uma porta para a fantasia, além do mundo cotidiano, ordinário; uma fuga daquilo que torna esse cotidiano irremediável, a descoberta de uma nova possibilidade.
Graciliano considerava a literatura como algo parecido com um "cultivo de insignificâncias", mas insignificâncias capazes de dar sentido ao mundo, mesmo que seja um mundo degradado, onde palavras de salvação não tenham mais razão (será?). Não é isso que tentamos fazer diariamente? Buscar algo além de um "simples pãozinho com manteiga", como diria Alfred Döblin? E se não for capaz de nos apontar uma re
sposta, como pede Ferreira Gular, que ao menos nos retire, por alguns momentos, de um mundo sem respostas. Parece que a relação entre a Arte e a Vida é mais estreita do que supúnhamos. Enquanto penso melhor nisso - e esse "enquanto" pode ser infinito - sugiro esse duplo encontro: com o universo dos contos e com o universo que a Arte pode nos oferecer.

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http://impressoesdeleitura.blogspot.com/2010/04/os-astronomos-aos-nove-anos-eu-era.html
Na verdade, não é um conto - é um capítulo de um romance - mas pode ser lido como tal, pois apresenta uma unidade e uma força autônoma. O texto se encontra no livro "Infância", de 1945 e é uma reflexão do Graciliano adulto acerca do Graciliano menino, e o que o levou a ser o escritor que foi;
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http://intervox.nce.ufrj.br/~valdenit/felicida.htm
Faz parte do livro de mesmo nome do conto, de 1971, e reúne outros contos da autora (também tem traços auto-biográficos)

Um comentário:

  1. Sim sim, Senhorita Nara! Ainda bem que não é certeza de nada-e espero continuar assim- o que conversamos por aí sobre arte, eu mesmo, certas vezes procuro entender o porque de algumas criações não precisarem de sentido ou explicação.
    Gostei, menina

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