terça-feira, 17 de maio de 2011

As mil e uma coisas

Eu trabalho (estagio) numa biblioteca. Por uma indicação de uma amiga da minha irmã, vim parar nesse lugar estranho e romântico que fazia a alegria da minha fantasia de criança. Criança: vamos começar por aí, minha infância.
Aprendi a ler com quase seis anos. Fiquei um ano sem ir para a escolinha porque minha mãe não tinha conseguido manter a bolsa na escola em que eu estudava e, não me lembro porquê, não me colocou numa creche, qualquer coisa do tipo. Foi um ano angustiante - naquilo que pode ser angústia para uma criança - em que eu, ainda não alfabetizada, ficava desesperadamente tentando inventar significados para o que eu "lia" nos gibis, por exemplo. Até que um dia, meu irmão - dois anos mais velho - resolveu me ensinar a ler. Lembro perfeitamente do livro: As pirâmides, umlivrinho pequeno, provavelmente de alguma coleção de jornal ou revista, sei lá. Era lindo, tinha umas ilustrações maravilhosas, com umas entradas secretas dentro daqueles monumentos fascinantes. Curioso que meu irmão - que me dera a chave para um mundo sem mais solidão - nunca gostou de ler, até hoje é um sacrifício fazê-lo se interessar por um conto de uma página do Kafka. Mas minha gratidão a ele vai perdoar esse desânimo.
Aprendi e aprendi rápido, pois descobri um lugar estranho e romântico (tão perto da minha casa!), onde passei muitas manhãs e tardes. A biblioteca. A biblioteca Castro Alves (lembro de como queria saber quem era esse rapaz, de nome tão estranho - "Castro? Nunca vi esse nome!"). Lembro também de um dia falar para a bibliotecária, que estava sempre de mau humor (como isso era possível num lugar daquele?!) que ela tinha o melhor emprego do mundo. Hoje sei que um bibliotecário não fica simplesmente rodeado de livros - porque para mim era isso: ficar num lugar cheio de livros, e saber onde fica cada um deles! - há sempre os "ossos do ofício". Mas o fascínio não acabou, e foi despertado alguns dias atrás...

Eu estava na aula de Estudos da Educação, no curso de Licenciatura. A professora, como sempre, passou um texto para lermos para a próxima aula e trazermos uma reflexão a respeito. Anotei o nome do texto, do livro em que se encontrava, e da autora. Mais tarde, entrei no sistema de busca das bibliotecas da USP para saber se tinham esse livro, porque eu não queria gastar com xerox. Descobri que havia, justamente na biblioteca em que eu trabalho. Peguei o código da localização na estante e aluguei.

Parei para pensar que loucura que é isso. Uma obra, que até algumas horas antes, não significava nada para mim, de repente era algo que fazia sentido, que eu precisava conhecer para aprender uma determinada coisa, para pensar num determinado problema, e que, em meio a tantas outras, estava lá, num lugar específico, num prédio pertinho de mim. Lembrei das metáforas do Borges sobre as bibliotecas, como uma imagem de nossa memória, de nossa vida: "uma biblioteca interminável". Pensei em quantas coisas existiam no mundo, guardadinhas num lugar específico, num prédio, concreto ou não, pertinho ou não, e quais delas iriam entrar ou passar na minha vida. Pensei na multiplicidade que é esse mundo em que a gente vive, e que, infelizmente, às vezes vive como se fosse uma coisa só, uma monocórdia, um único tom. Pensei nas mil e uma noites, do consolo de sempre haver uma noite a mais. Que eu sempre preferi as reticências ao ponto final...

6 comentários:

  1. Nara, que coisa curiosa. Eu também me lembro, vivamente (e olha que faz tempo) dessa sensação de querer demais decifrar a escrita e não conseguir. Sim, era uma angústia! Ter que pedir para um adulto ler pra mim, que saco que era. Acho que é por isso que, até hoje, não gosto de ouvir uma pessoa lendo, não consigo me concentrar.
    Muito bonitas as duas últimas frases do seu texto.

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  2. É uma aflição mesmo! Às vezes quando estou lendo tento imaginar que não sei o que está escrito, volta aquele sentimento de angústia e fascínio...
    Ah obrigada. Estou lendo As mil e uma noites, me inspira muito. A linguagem árabe é tão diferente da nossa, é realmente um outro olhar sobre as coisas...

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  3. interessante o texto!

    comigo foi O TUBO DE COLA, foi minha mãe mesmo que ensinou! e depois O RATO NA BIBLIOTECA, minha primeira experiencia com essa coisa cheia de livros marcados com seus códigos indecifraveis! (a bibliotecaria terminava a história casando com um livreiro! kkk) isso era a primeira série! eu estava um ano adiantado mas entrei tres meses atrasado!

    havia uma prateleira forrada com os livros "da sala", mas a professora me emprestava! Minha primeira Bibliotecaria, depois vieram algumas outras, e apenas um Outro!

    sempre Bibliotecarios, nunca Bibliotechatos, bibliodocumentafólogos, biblioconstrangedores ou biblioshhhhhhhhh!

    o trauma mesmo só veio quando eu resolvi fazer Biblioteconomia e descobri que estes "Ossos do Oficio" são entregues na porta do departamento, como cortesia da casa!

    agora não sei se mantenho-me no idilio pragmatico do qual estou tão habituado, se parto pras trincheiras da trollagem bibliotecaria! Coisa que venho fazendo algum tempo.

    Por fim (já basta não é mesmo) após algumas evocações, memórias, relembramentos fica só esse testinho murcho! um pedaço do que pensei um dia! um tantinho de mim chamado comentario.

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  4. Olá! Olha só, você tem um blog também! ;P

    Gostei do seu texto! Me deu até vontade de ir numa biblioteca?!rs Não que eu nunca tenha ido, mas é que já faz tempo.
    Parabéns! você escreve super bem, me fez até trocar os vícios de internet ("q" , "vc" , "tb"), deste comentário!!! hahaha
    Continue escrevendo!!! Antes reticências do que ponto final!!! (muito boa a frase!)

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  5. Olá Nara, Belo Artigo(conto)! Eu me lembrei da primeira palavra que li. O mundo é assim nara todo tão longe , mas ao mesmo tempo perto de mais. É o que nós filósofos chamamos na filosofia de Metafísica, é um acontecimento lindo. Na verdade esse livro já estava perto de você desde que você começou a ler é teve intertece pela coisa . Aristóteles chama de estado de potência. Um estado de potência é aquilo que pode a vim acontecer ou não. Mas no entanto sempre esteve ali em seu estado de potência. Por isso dessa sensação de o livro esta sempre perto de você, É pq você tem essa aptidão para leitura. Então sempre vai ter um livro em estado de potência que você pode ler-lo ou não.

    By: Mauro Henrique Soares Aniceto

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